Com a descoberta da electricidade, o
desenvolvimento industrial e tecnológico, o controlo sobre a energia, a
produção alimentar, as comunicações, etc., e com os paradigmas sociais voltados
para o “ter” e para o “sucesso”, a sociedade internacional modificou-se e
desenvolveu novos hábitos de vida e de trabalho. A sociedade passou a funcionar
em contínuo, primeiro 24h por dia e depois os 7 dias da semana. Os prazeres
modificaram-se e estenderam-se pela noite. Neste enquadramento, o sono passou a
ser visto como um empecilho para o trabalho, a produtividade e os interesses
económicos.
Por isso, desde o último século, dorme-se menos,
e progressivamente menos, e este deficit atinge todas as idades.
Antes, ninguém questionava quanto devia dormir um
bebé, agora perguntam-me se 8 horas chega! Na minha adolescência, jantava-se
cedo e a televisão parava à meia-noite com o hino nacional, agora o jantar é
cada vez mais tardio e a televisão não pára. Namorava-se com “chaperon” e
autorização dos pais, agora os namorados estão juntos olhando cada um para o
seu telemóvel. Agradecia-se a Deus “o pão de cada dia” e nada se estragava,
hoje há comida em grande abundância nos centros comerciais e hipermercados.
Convencemo-nos de que não tínhamos limites.
Há cada vez mais pobres e muitos milhões estão
abaixo do limiar da pobreza; os divórcios e as famílias monoparentais aumentam;
as doenças do sono também.
Os alertas para os riscos deste comportamento são
muitos, mas na sociedade global não falam suficientemente alto, sufocados pelos
sistemáticos desafios e incentivos em sentido contrário.
Os riscos e as consequências são, contudo,
graves. Em todas as idades e em todos os continentes, dormir de menos ou demais
aumenta o risco de obesidade, hipertensão arterial, diabetes tipo II,
acidentes, cancro, depressão, insónia, morte mais precoce. Sobrepostos a todos
estes riscos há os que afectam o cérebro, diminuindo a memória, a aprendizagem,
a criatividade, a resolução de problemas e afectando as emoções e a estabilidade
emocional.
Porquê?
Porque no sono acontecem duas coisas
fundamentais. O cérebro, liberto da atenção ao exterior, foca a sua atenção
sobre si próprio e sobre o corpo, e estes dois diálogos são essenciais para a
saúde.
No sono, o paradigma milenar de “alma sã em corpo
são” assume deste modo a sua intensidade máxima.
O cérebro cuida de si próprio, aumentando a
intensidade do sono em áreas mais estimuladas enquanto acordado (por exemplo,
áreas com maior aprendizagem), religando circuitos importantes e fomentando
interligação rápida entre várias zonas para que falem entre si, desligando
circuitos para que descansem, apagando informação irrelevante e reforçando
aquela que importa.
Como não se aprende o que não se gosta, o cérebro
que dorme estabiliza as emoções; como, para aprender, é preciso experimentar,
cria ambientes virtuais nos sonhos, onde, sem risco, se pode discutir, fugir,
lutar, conversar ou chorar; como é preciso inovar, os sonhos versam sobre
coisas impossíveis sem esquecer a raiz do real.
Assim é do conhecimento corrente que a
privação de sono aumenta os lapsos de atenção, lentifica a memória, reduz o output
cognitivo e induz um humor depressivo.
Nos adolescentes e crianças, a perda de sono
aumenta a distractibilidade e a irritabilidade, por oposição ao sono adequado
que consolida a memória.
Por outro lado, a privação afecta a memória de
estímulos neutros e positivos. Este efeito tem como consequência realçar a
recordação de estímulos negativos e aumentar as respostas comportamentais de
impulsividade a estímulos negativos, associando-se a menor expressividade
facial aos estímulos emocionais.
A privação de sono tem também consequências
comportamentais como maior risco de trauma, acidentes não intencionais e quedas
em crianças e adolescentes e adultos.
As relações entre sono e capacidade intelectual
têm sido avaliadas indirectamente através das relações com características do
sono, tendo sido encontradas correlações entre as características dos fusos de
sono e o quociente de inteligência.
É também sabido que um episódio de sono após um
período de aprendizagem melhora essa mesma aprendizagem. Isto é verdade para
tarefas verbais, motoras, tarefas de orientação espacial e desempenhos mais
especializados, como tocar música, etc.
Por sua vez, a aprendizagem diurna de uma tarefa
motora associa-se e correlaciona-se linearmente com um aumento da actividade
delta e dos fusos de sono, no sono subsequente, na região motora contra-lateral.
Os efeitos do sono na consolidação da memória
foram descritos no início do século XIX e do século XX, mas actualmente existe
um corpo significativo de trabalhos que reafirma a função e o efeito do sono na
consolidação de memórias de procedimentos e também na memória declarativa. Por
outro lado, o sono não só melhora como também protege a memória declarativa.
Desde os anos 60 que se sabe que a memória
declarativa é afectada tanto pelo sono como pela privação de sono. A privação
de 36h de sono diminui significativamente a retenção de sequências temporais,
mesmo com o auxílio de doses de cafeína, e afecta também a percepção correcta
do desempenho.
A ideia de que o sono activa a criatividade advém
de relatos de muitos cientistas e artistas que revelaram ter feito as suas
obras ao acordar, após um sonho ou em fases de hipnagogia.
O relato mais detalhado deve-se a Kekulé,
relativamente ao sonho que o leva à descoberta da estrutura do anel de benzeno.
Referem-se outros: a descoberta do carreto da máquina de costura por Singer, os
quadros de Dali, o livro Mr. Jeckyll and
Mr. Hyde por Stevenson, o Imagine
do Paul Mac Cartney, o filme Sonhos de
Kurosawa, etc.
O efeito do sono não é apenas codificar e
consolidar memórias ou aprendizagens mas antes integrá-las em novos esquemas
associativos, que, através da generalização ou integração, podiam mostrar novas
perspectivas ou direcções, dando razão ao ditado popular: “O travesseiro é bom
conselheiro”.
Diversas experiências foram feitas neste sentido
provando esta capacidade de integração “de novo” tanto em adultos como em
crianças em fase pré-lingual.
Tendo isto em conta, o sono nocturno possibilita
para todas as idades a consolidação de memórias e favorece os conceitos de
generalização de informação e a identificação de soluções escondidas.
O conhecimento do efeito do sono sobre as emoções
advém do aumento de irritabilidade e de mau humor após uma noite de privação de
sono, características que se agravam se a privação for mantida. Apesar disto,
também se sabe que a privação aguda (algumas noites) de sono pode ter um efeito
anti-depressivo, efeito esse usado, anos atrás, no tratamento das depressões
graves.
Por outro lado, sabe-se que tanto o stress como as emoções positivas ou
negativas que ocorrem no dia-a-dia influenciam o sono.
O aumento de eventos positivos contribui para
melhor sono subjectivo, e uma noite de sono melhora o reconhecimento de imagens
com componentes emocionais. Os acontecimentos negativos tiram o sono a muitos,
bons ou maus, dormidores.
Nesta perspectiva, a privação de sono funciona
como uma bomba relógio para surtos de irritabilidade/agressividade na vida
normal e pode explicar o humor depressivo de muitas perturbações psiquiátricas.
Finalmente, múltiplas doenças do sono, ou doenças
médicas, neurológicas e psiquiátricas que o atingem de modo primordial afectam
sistematicamente a memória, a capacidade de atenção e as funções executivas.
Assim, a prática de dormir pouco em trabalhadores
intelectuais afecta sobremaneira as capacidades cognitivas (memória,
aprendizagem, criatividade), as funções executivas e as capacidades emocionais,
capacidades estas, essenciais à própria execução das tarefas intelectuais.
Por isso, se o cérebro e o corpo são as nossas
ferramentas de trabalho, pô-las em risco equivale a matar “a galinha de ovos de
ouro” de cada profissional.
Em síntese: para pensar bem, é importante dormir
bem.
E o corpo?
Os riscos para o corpo da privação de sono já
foram descritos. Porquê?
Durante o sono, são produzidas de forma regular e
sistemática as hormonas anabolizantes, ou seja, a hormona do crescimento, a
prolactina e a testosterona, e são controladas as hormonas catabolizantes, com
maior relevo para o cortisol e a hormona estimulante da tiroideia.
Tudo acontece de modo a que se cresça ou se reparem
os tecidos dos diferentes órgãos enquanto se dorme, e estejam reguladas funções
reprodutoras. Tudo acontece para que, de manhã ao acordar, o cortisol esteja
num nível adequado, para que o dia comece bem. Se não dormirmos, as hormonas
anabolizantes diminuem e as catabolizantes aumentam e os riscos para a saúde
aparecem.
Por outro lado, o sono é essencial na regulação
de energia e para a homeostase, pelo controlo da temperatura, que diminui
quando dormimos, e pela regulação do controlo energético por via alimentar, num
balanço entre o que nos tira a vontade de comer (a leptina, produzida à noite)
e o que nos aumenta o apetite (a orexina, produzida de dia e a grelina,
segregada ao fim do dia). Por tudo isto, o dormir pouco dá fadiga e aumenta o
risco de aumentar de peso em todos os grupos etários.
Além disso, o sono tem uma relação estreita e
complexa com a imunidade e o não dormir aumenta o risco de doenças infecciosas
e eventualmente auto-imunes.
No sono controla-se a divisão celular e, por isso,
tanto o dormir pouco como o dormir fora de horas ou de forma irregular aumentam
o risco de cancro em ambos os sexos.
Não ter limites? A grande ilusão da época
tecnológica.
Não dormir é verdadeiramente pôr em risco um
aforismo romano: “Alma sã em corpo são”.
Professora Teresa Paiva
Lisboa, 7 de Junho de 2013
4 comentários:
Ótimo texto!
Só conseguia dormir com remédio ou fumando um. Parei quando descobri isso aqui: https://hipnoonline.com.br/solucao-hipnotica-sono-perfeito
Obrigada pelo comentário
É bom que já durma bem
Teresa Paiva
Parabéns pelo texto. Muito bem feito e esclarecedor.
Todos deveriam ler e entender essa relação de um bom sono e a saúde tanto fisica quanto mental
Obrigada pelo comentário, que tem o efeito de nos ajudar a continuar
Teresa Paiva
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