sexta-feira, 7 de junho de 2013

Alma sã em corpo são


Com a descoberta da electricidade, o desenvolvimento industrial e tecnológico, o controlo sobre a energia, a produção alimentar, as comunicações, etc., e com os paradigmas sociais voltados para o “ter” e para o “sucesso”, a sociedade internacional modificou-se e desenvolveu novos hábitos de vida e de trabalho. A sociedade passou a funcionar em contínuo, primeiro 24h por dia e depois os 7 dias da semana. Os prazeres modificaram-se e estenderam-se pela noite. Neste enquadramento, o sono passou a ser visto como um empecilho para o trabalho, a produtividade e os interesses económicos.

Por isso, desde o último século, dorme-se menos, e progressivamente menos, e este deficit atinge todas as idades.

Antes, ninguém questionava quanto devia dormir um bebé, agora perguntam-me se 8 horas chega! Na minha adolescência, jantava-se cedo e a televisão parava à meia-noite com o hino nacional, agora o jantar é cada vez mais tardio e a televisão não pára. Namorava-se com “chaperon” e autorização dos pais, agora os namorados estão juntos olhando cada um para o seu telemóvel. Agradecia-se a Deus “o pão de cada dia” e nada se estragava, hoje há comida em grande abundância nos centros comerciais e hipermercados.

Convencemo-nos de que não tínhamos limites.

Há cada vez mais pobres e muitos milhões estão abaixo do limiar da pobreza; os divórcios e as famílias monoparentais aumentam; as doenças do sono também.

Os alertas para os riscos deste comportamento são muitos, mas na sociedade global não falam suficientemente alto, sufocados pelos sistemáticos desafios e incentivos em sentido contrário.

Os riscos e as consequências são, contudo, graves. Em todas as idades e em todos os continentes, dormir de menos ou demais aumenta o risco de obesidade, hipertensão arterial, diabetes tipo II, acidentes, cancro, depressão, insónia, morte mais precoce. Sobrepostos a todos estes riscos há os que afectam o cérebro, diminuindo a memória, a aprendizagem, a  criatividade, a resolução de problemas e afectando as emoções e a estabilidade emocional.

Porquê?

Porque no sono acontecem duas coisas fundamentais. O cérebro, liberto da atenção ao exterior, foca a sua atenção sobre si próprio e sobre o corpo, e estes dois diálogos são essenciais para a saúde.

No sono, o paradigma milenar de “alma sã em corpo são” assume deste modo a sua intensidade máxima.

O cérebro cuida de si próprio, aumentando a intensidade do sono em áreas mais estimuladas enquanto acordado (por exemplo, áreas com maior aprendizagem), religando circuitos importantes e fomentando interligação rápida entre várias zonas para que falem entre si, desligando circuitos para que descansem, apagando informação irrelevante e reforçando aquela que importa.

Como não se aprende o que não se gosta, o cérebro que dorme estabiliza as emoções; como, para aprender, é preciso experimentar, cria ambientes virtuais nos sonhos, onde, sem risco, se pode discutir, fugir, lutar, conversar ou chorar; como é preciso inovar, os sonhos versam sobre coisas impossíveis sem esquecer a raiz do real.

 Assim é do conhecimento corrente que a privação de sono aumenta os lapsos de atenção, lentifica a memória, reduz o output cognitivo e induz um humor depressivo.

Nos adolescentes e crianças, a perda de sono aumenta a distractibilidade e a irritabilidade, por oposição ao sono adequado que consolida a memória.

Por outro lado, a privação afecta a memória de estímulos neutros e positivos. Este efeito tem como consequência realçar a recordação de estímulos negativos e aumentar as respostas comportamentais de impulsividade a estímulos negativos, associando-se a menor expressividade facial aos estímulos emocionais.

A privação de sono tem também consequências comportamentais como maior risco de trauma, acidentes não intencionais e quedas em crianças e adolescentes e adultos.

As relações entre sono e capacidade intelectual têm sido avaliadas indirectamente através das relações com características do sono, tendo sido encontradas correlações entre as características dos fusos de sono e o quociente de inteligência.

É também sabido que um episódio de sono após um período de aprendizagem melhora essa mesma aprendizagem. Isto é verdade para tarefas verbais, motoras, tarefas de orientação espacial e desempenhos mais especializados, como tocar música, etc.

Por sua vez, a aprendizagem diurna de uma tarefa motora associa-se e correlaciona-se linearmente com um aumento da actividade delta e dos fusos de sono, no sono subsequente, na região motora contra-lateral.

Os efeitos do sono na consolidação da memória foram descritos no início do século XIX e do século XX, mas actualmente existe um corpo significativo de trabalhos que reafirma a função e o efeito do sono na consolidação de memórias de procedimentos e também na memória declarativa. Por outro lado, o sono não só melhora como também protege a memória declarativa.

Desde os anos 60 que se sabe que a memória declarativa é afectada tanto pelo sono como pela privação de sono. A privação de 36h de sono diminui significativamente a retenção de sequências temporais, mesmo com o auxílio de doses de cafeína, e afecta também a percepção correcta do desempenho.

A ideia de que o sono activa a criatividade advém de relatos de muitos cientistas e artistas que revelaram ter feito as suas obras ao acordar, após um sonho ou em fases de hipnagogia.

O relato mais detalhado deve-se a Kekulé, relativamente ao sonho que o leva à descoberta da estrutura do anel de benzeno. Referem-se outros: a descoberta do carreto da máquina de costura por Singer, os quadros de Dali, o livro Mr. Jeckyll and Mr. Hyde por Stevenson, o Imagine do Paul Mac Cartney, o filme Sonhos de Kurosawa, etc.

O efeito do sono não é apenas codificar e consolidar memórias ou aprendizagens mas antes integrá-las em novos esquemas associativos, que, através da generalização ou integração, podiam mostrar novas perspectivas ou direcções, dando razão ao ditado popular: “O travesseiro é bom conselheiro”.

Diversas experiências foram feitas neste sentido provando esta capacidade de integração “de novo” tanto em adultos como em crianças em fase pré-lingual.

Tendo isto em conta, o sono nocturno possibilita para todas as idades a consolidação de memórias e favorece os conceitos de generalização de informação e a identificação de soluções escondidas.

O conhecimento do efeito do sono sobre as emoções advém do aumento de irritabilidade e de mau humor após uma noite de privação de sono, características que se agravam se a privação for mantida. Apesar disto, também se sabe que a privação aguda (algumas noites) de sono pode ter um efeito anti-depressivo, efeito esse usado, anos atrás, no tratamento das depressões graves.

Por outro lado, sabe-se que tanto o stress como as emoções positivas ou negativas que ocorrem no dia-a-dia influenciam o sono.

O aumento de eventos positivos contribui para melhor sono subjectivo, e uma noite de sono melhora o reconhecimento de imagens com componentes emocionais. Os acontecimentos negativos tiram o sono a muitos, bons ou maus, dormidores.

Nesta perspectiva, a privação de sono funciona como uma bomba relógio para surtos de irritabilidade/agressividade na vida normal e pode explicar o humor depressivo de muitas perturbações psiquiátricas.

Finalmente, múltiplas doenças do sono, ou doenças médicas, neurológicas e psiquiátricas que o atingem de modo primordial afectam sistematicamente a memória, a capacidade de atenção e as funções executivas.

Assim, a prática de dormir pouco em trabalhadores intelectuais afecta sobremaneira as capacidades cognitivas (memória, aprendizagem, criatividade), as funções executivas e as capacidades emocionais, capacidades estas, essenciais à própria execução das tarefas intelectuais.

Por isso, se o cérebro e o corpo são as nossas ferramentas de trabalho, pô-las em risco equivale a matar “a galinha de ovos de ouro” de cada profissional.

Em síntese: para pensar bem, é importante dormir bem.

E o corpo?

Os riscos para o corpo da privação de sono já foram descritos. Porquê?

Durante o sono, são produzidas de forma regular e sistemática as hormonas anabolizantes, ou seja, a hormona do crescimento, a prolactina e a testosterona, e são controladas as hormonas catabolizantes, com maior relevo para o cortisol e a hormona estimulante da tiroideia.

Tudo acontece de modo a que se cresça ou se reparem os tecidos dos diferentes órgãos enquanto se dorme, e estejam reguladas funções reprodutoras. Tudo acontece para que, de manhã ao acordar, o cortisol esteja num nível adequado, para que o dia comece bem. Se não dormirmos, as hormonas anabolizantes diminuem e as catabolizantes aumentam e os riscos para a saúde aparecem.

Por outro lado, o sono é essencial na regulação de energia e para a homeostase, pelo controlo da temperatura, que diminui quando dormimos, e pela regulação do controlo energético por via alimentar, num balanço entre o que nos tira a vontade de comer (a leptina, produzida à noite) e o que nos aumenta o apetite (a orexina, produzida de dia e a grelina, segregada ao fim do dia). Por tudo isto, o dormir pouco dá fadiga e aumenta o risco de aumentar de peso em todos os grupos etários.

Além disso, o sono tem uma relação estreita e complexa com a imunidade e o não dormir aumenta o risco de doenças infecciosas e eventualmente auto-imunes.

No sono controla-se a divisão celular e, por isso, tanto o dormir pouco como o dormir fora de horas ou de forma irregular aumentam o risco de cancro em ambos os sexos.

Não ter limites? A grande ilusão da época tecnológica.

Não dormir é verdadeiramente pôr em risco um aforismo romano: “Alma sã em corpo são”.

 

Professora Teresa Paiva

Lisboa, 7 de Junho de 2013

4 comentários:

Anónimo disse...

Ótimo texto!

Só conseguia dormir com remédio ou fumando um. Parei quando descobri isso aqui: https://hipnoonline.com.br/solucao-hipnotica-sono-perfeito

Anónimo disse...

Obrigada pelo comentário
É bom que já durma bem
Teresa Paiva

sonhar disse...

Parabéns pelo texto. Muito bem feito e esclarecedor.
Todos deveriam ler e entender essa relação de um bom sono e a saúde tanto fisica quanto mental

Anónimo disse...

Obrigada pelo comentário, que tem o efeito de nos ajudar a continuar
Teresa Paiva

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