sexta-feira, 21 de junho de 2013

Os marialvas e as super-mulheres


Quando eu era pequena, os marialvas dedicavam-se a carros e mulheres ou a touros e mulheres, com ou sem misturas de fado e valentes bebedeiras. Bonitos ou feios, não seriam particularmente inteligentes ou cultos, mas andavam afadigados nas já referidas ocupações.

Nesse tempo, as mulheres ou eram mães ou eram mulheres, raramente ambas, porque quando mães, avolumavam-se e, redondinhas, perdiam o interesse dos maridos, e, quando eram mulheres, rodeavam-se de tias solteiras e/ou “criadas” (nome dado às empregadas domésticas) e, preocupadas com vestidos e festas, delegavam a atenção aos filhos para planos secundários.

Hoje tudo é diferente.

As super-mulheres de hoje são tudo: mães, esposas, profissionais e domésticas, e, para o conseguirem, fazem piruetas acrobáticas para fazer tudo em condições: tratam dos filhos, embelezam-se para o marido, são perfeitas no trabalho e ainda arrumam a casa.

Impossível! Não se pode fazer tudo bem, sobretudo porque falta tempo para serem elas próprias.

Tensas e irritáveis, organizam-se cada vez mais para se perderem de seguida em consequências funestas: esgotamento, depressão, separação e outras trapalhadas, e muitos sonhos desfeitos apesar do muito trabalho e do grande empenhamento.

E os homens? Um homem com um mínimo de sensatez não se atreve a gabar-se publicamente das suas conquistas femininas, nem das velocidades supersónicas dos seus carros, nem de noites encharcadas em vinho. Se o fizesse, teria à perna feministas, jornalistas, e outros tantos críticos e, quiçá, arriscava perseguição de qualquer forma de polícia.

De que se gabam, então? Espantada, ouço nos media, de forma reiterada e sucessiva, uma frase com sabor de auto-elogio: “Durmo poucas horas, mas…”; “Durmo pouco”; “Não dormi”.

Dormem pouco? Alguém quereria que um cirurgião o operasse, com mão imprecisa e olhos sonolentos por não ter dormido? Certamente que não.

Então porque havemos de querer que aqueles/as que tratam de assuntos importantes das instituições ou da nação, ou que lidam com matérias do nosso quotidiano, ou que tratam de aspectos económicos das mais variadas dimensões, que trabalham aqui, ali e acolá nas instituições mais variadas, em suma, aqueles/as que precisam de pensar, exerçam essas funções privados/as de sono?

Sabe-se que a privação de sono afecta o lobo frontal e as suas funções executivas, atingindo também o pensamento abstracto, a flexibilidade de raciocínio, a capacidade criativa, a memória, a aprendizagem.

No seu livro Sleepfaring, Jim Horne questiona exactamente o efeito da privação de sono em pessoas em lugares chave de decisão.

Efectivamente o conselho mais importante de Clinton a Obama foi que dormisse bem, porque ele próprio tinha cometido erros, sempre que não dormira o suficiente.

Voltando à “velha guarda”, não consta que o Dr. Mário Soares alguma vez se tenha gabado de dormir pouco. O Einstein também não.

Porque... quem não dorme bem não pode pensar bem e, tal como já dizia Nietzsche em Assim falava Zaratustra:

"Todos vós, que amais o trabalho desenfreado (...), o vosso labor é maldição e desejo de esquecerdes quem sois."

 

Prof. Teresa Paiva

Lisboa, 21 de Junho de 2013


sexta-feira, 7 de junho de 2013

Alma sã em corpo são


Com a descoberta da electricidade, o desenvolvimento industrial e tecnológico, o controlo sobre a energia, a produção alimentar, as comunicações, etc., e com os paradigmas sociais voltados para o “ter” e para o “sucesso”, a sociedade internacional modificou-se e desenvolveu novos hábitos de vida e de trabalho. A sociedade passou a funcionar em contínuo, primeiro 24h por dia e depois os 7 dias da semana. Os prazeres modificaram-se e estenderam-se pela noite. Neste enquadramento, o sono passou a ser visto como um empecilho para o trabalho, a produtividade e os interesses económicos.

Por isso, desde o último século, dorme-se menos, e progressivamente menos, e este deficit atinge todas as idades.

Antes, ninguém questionava quanto devia dormir um bebé, agora perguntam-me se 8 horas chega! Na minha adolescência, jantava-se cedo e a televisão parava à meia-noite com o hino nacional, agora o jantar é cada vez mais tardio e a televisão não pára. Namorava-se com “chaperon” e autorização dos pais, agora os namorados estão juntos olhando cada um para o seu telemóvel. Agradecia-se a Deus “o pão de cada dia” e nada se estragava, hoje há comida em grande abundância nos centros comerciais e hipermercados.

Convencemo-nos de que não tínhamos limites.

Há cada vez mais pobres e muitos milhões estão abaixo do limiar da pobreza; os divórcios e as famílias monoparentais aumentam; as doenças do sono também.

Os alertas para os riscos deste comportamento são muitos, mas na sociedade global não falam suficientemente alto, sufocados pelos sistemáticos desafios e incentivos em sentido contrário.

Os riscos e as consequências são, contudo, graves. Em todas as idades e em todos os continentes, dormir de menos ou demais aumenta o risco de obesidade, hipertensão arterial, diabetes tipo II, acidentes, cancro, depressão, insónia, morte mais precoce. Sobrepostos a todos estes riscos há os que afectam o cérebro, diminuindo a memória, a aprendizagem, a  criatividade, a resolução de problemas e afectando as emoções e a estabilidade emocional.

Porquê?

Porque no sono acontecem duas coisas fundamentais. O cérebro, liberto da atenção ao exterior, foca a sua atenção sobre si próprio e sobre o corpo, e estes dois diálogos são essenciais para a saúde.

No sono, o paradigma milenar de “alma sã em corpo são” assume deste modo a sua intensidade máxima.

O cérebro cuida de si próprio, aumentando a intensidade do sono em áreas mais estimuladas enquanto acordado (por exemplo, áreas com maior aprendizagem), religando circuitos importantes e fomentando interligação rápida entre várias zonas para que falem entre si, desligando circuitos para que descansem, apagando informação irrelevante e reforçando aquela que importa.

Como não se aprende o que não se gosta, o cérebro que dorme estabiliza as emoções; como, para aprender, é preciso experimentar, cria ambientes virtuais nos sonhos, onde, sem risco, se pode discutir, fugir, lutar, conversar ou chorar; como é preciso inovar, os sonhos versam sobre coisas impossíveis sem esquecer a raiz do real.

 Assim é do conhecimento corrente que a privação de sono aumenta os lapsos de atenção, lentifica a memória, reduz o output cognitivo e induz um humor depressivo.

Nos adolescentes e crianças, a perda de sono aumenta a distractibilidade e a irritabilidade, por oposição ao sono adequado que consolida a memória.

Por outro lado, a privação afecta a memória de estímulos neutros e positivos. Este efeito tem como consequência realçar a recordação de estímulos negativos e aumentar as respostas comportamentais de impulsividade a estímulos negativos, associando-se a menor expressividade facial aos estímulos emocionais.

A privação de sono tem também consequências comportamentais como maior risco de trauma, acidentes não intencionais e quedas em crianças e adolescentes e adultos.

As relações entre sono e capacidade intelectual têm sido avaliadas indirectamente através das relações com características do sono, tendo sido encontradas correlações entre as características dos fusos de sono e o quociente de inteligência.

É também sabido que um episódio de sono após um período de aprendizagem melhora essa mesma aprendizagem. Isto é verdade para tarefas verbais, motoras, tarefas de orientação espacial e desempenhos mais especializados, como tocar música, etc.

Por sua vez, a aprendizagem diurna de uma tarefa motora associa-se e correlaciona-se linearmente com um aumento da actividade delta e dos fusos de sono, no sono subsequente, na região motora contra-lateral.

Os efeitos do sono na consolidação da memória foram descritos no início do século XIX e do século XX, mas actualmente existe um corpo significativo de trabalhos que reafirma a função e o efeito do sono na consolidação de memórias de procedimentos e também na memória declarativa. Por outro lado, o sono não só melhora como também protege a memória declarativa.

Desde os anos 60 que se sabe que a memória declarativa é afectada tanto pelo sono como pela privação de sono. A privação de 36h de sono diminui significativamente a retenção de sequências temporais, mesmo com o auxílio de doses de cafeína, e afecta também a percepção correcta do desempenho.

A ideia de que o sono activa a criatividade advém de relatos de muitos cientistas e artistas que revelaram ter feito as suas obras ao acordar, após um sonho ou em fases de hipnagogia.

O relato mais detalhado deve-se a Kekulé, relativamente ao sonho que o leva à descoberta da estrutura do anel de benzeno. Referem-se outros: a descoberta do carreto da máquina de costura por Singer, os quadros de Dali, o livro Mr. Jeckyll and Mr. Hyde por Stevenson, o Imagine do Paul Mac Cartney, o filme Sonhos de Kurosawa, etc.

O efeito do sono não é apenas codificar e consolidar memórias ou aprendizagens mas antes integrá-las em novos esquemas associativos, que, através da generalização ou integração, podiam mostrar novas perspectivas ou direcções, dando razão ao ditado popular: “O travesseiro é bom conselheiro”.

Diversas experiências foram feitas neste sentido provando esta capacidade de integração “de novo” tanto em adultos como em crianças em fase pré-lingual.

Tendo isto em conta, o sono nocturno possibilita para todas as idades a consolidação de memórias e favorece os conceitos de generalização de informação e a identificação de soluções escondidas.

O conhecimento do efeito do sono sobre as emoções advém do aumento de irritabilidade e de mau humor após uma noite de privação de sono, características que se agravam se a privação for mantida. Apesar disto, também se sabe que a privação aguda (algumas noites) de sono pode ter um efeito anti-depressivo, efeito esse usado, anos atrás, no tratamento das depressões graves.

Por outro lado, sabe-se que tanto o stress como as emoções positivas ou negativas que ocorrem no dia-a-dia influenciam o sono.

O aumento de eventos positivos contribui para melhor sono subjectivo, e uma noite de sono melhora o reconhecimento de imagens com componentes emocionais. Os acontecimentos negativos tiram o sono a muitos, bons ou maus, dormidores.

Nesta perspectiva, a privação de sono funciona como uma bomba relógio para surtos de irritabilidade/agressividade na vida normal e pode explicar o humor depressivo de muitas perturbações psiquiátricas.

Finalmente, múltiplas doenças do sono, ou doenças médicas, neurológicas e psiquiátricas que o atingem de modo primordial afectam sistematicamente a memória, a capacidade de atenção e as funções executivas.

Assim, a prática de dormir pouco em trabalhadores intelectuais afecta sobremaneira as capacidades cognitivas (memória, aprendizagem, criatividade), as funções executivas e as capacidades emocionais, capacidades estas, essenciais à própria execução das tarefas intelectuais.

Por isso, se o cérebro e o corpo são as nossas ferramentas de trabalho, pô-las em risco equivale a matar “a galinha de ovos de ouro” de cada profissional.

Em síntese: para pensar bem, é importante dormir bem.

E o corpo?

Os riscos para o corpo da privação de sono já foram descritos. Porquê?

Durante o sono, são produzidas de forma regular e sistemática as hormonas anabolizantes, ou seja, a hormona do crescimento, a prolactina e a testosterona, e são controladas as hormonas catabolizantes, com maior relevo para o cortisol e a hormona estimulante da tiroideia.

Tudo acontece de modo a que se cresça ou se reparem os tecidos dos diferentes órgãos enquanto se dorme, e estejam reguladas funções reprodutoras. Tudo acontece para que, de manhã ao acordar, o cortisol esteja num nível adequado, para que o dia comece bem. Se não dormirmos, as hormonas anabolizantes diminuem e as catabolizantes aumentam e os riscos para a saúde aparecem.

Por outro lado, o sono é essencial na regulação de energia e para a homeostase, pelo controlo da temperatura, que diminui quando dormimos, e pela regulação do controlo energético por via alimentar, num balanço entre o que nos tira a vontade de comer (a leptina, produzida à noite) e o que nos aumenta o apetite (a orexina, produzida de dia e a grelina, segregada ao fim do dia). Por tudo isto, o dormir pouco dá fadiga e aumenta o risco de aumentar de peso em todos os grupos etários.

Além disso, o sono tem uma relação estreita e complexa com a imunidade e o não dormir aumenta o risco de doenças infecciosas e eventualmente auto-imunes.

No sono controla-se a divisão celular e, por isso, tanto o dormir pouco como o dormir fora de horas ou de forma irregular aumentam o risco de cancro em ambos os sexos.

Não ter limites? A grande ilusão da época tecnológica.

Não dormir é verdadeiramente pôr em risco um aforismo romano: “Alma sã em corpo são”.

 

Professora Teresa Paiva

Lisboa, 7 de Junho de 2013